Quem nunca altera a sua opinião é como a água parada e começa a criar répteis no espírito. William Blake

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Memórias de amanhã

Olho para a menina dos olhos verdes e sorriso fácil. Pergunto-me se é verdadeiramente feliz; questiono-me se tudo não passa de uma ilusão, de uma concepção da sua imaginação fértil. Permanece a dúvida enquanto a observo – sinto que a conheço de algum lado, de uma outra existência. Faço-lhe sinal mas ela nem me vê – está feliz no seu pequeno universo e o apenas isso lhe interessa.
Quer ser grande, disseram-me; parece até que quer ensinar os mais novos, viajar pelos países que só vê no mapa, conhecer os heróis com que contacta nos livros que lhe dão pelos anos. Na sua ingenuidade existencial, interroga os ‘grandes’ porque cresceram tanto e ela não. Desconhece o que é o tempo ou a vida – para ela só existe o agora e o resto é magia, é um mistério insignificante.
Cruel inocência. Só ela para enganar uma criança tão crente no que ouve e no que sonha – ainda acredita no Pai Natal, nas Navegantes da Lua e no mundo das barbies. Distingue o mundo mágico do real, pensando mudar-se para lá em breve. Ainda não sabe mas falta pouco para ir para a escola: conviver aprendendo, viver aprendendo, olhar aprendendo – vai aprender, vai crescer (mas ela ainda não sabe).
Invejo-a ao mesmo tempo que a observo com pena. Poder viver na simplicidade infantil, ignorando o porq
uê e a razão das coisas. Contudo, os adultos são maus – enfeitam a realidade, perfumam o fedor social, escondem por baixo do jornal o sujo que não desaparece – no entanto, a criança pensa que são bons, que o mundo é bom, que tudo é bom e perfeito. Pobre alma.
A doce mentira esconde a dura verdade. A criança vai crescer, pouco a pouco; vai descobrir que o Pai Natal não existe, que os desenhos animados e os mundos mágicos são irreais e que há uma palavra muito feia chamada ‘ficção’ – a coitada vai perceber que os heróis com que sonhou toda a vida não existem – a desilusão vai aparecer, ‘bem vinda ao caminho para a vida adulta’.
Deixem-na dizer as maiores mentiras desde que não magoem ninguém. Deixem-na pensar que a magia existe, que as pessoas são boas e que vai conhecer os Power Rangers. Dêem-lhe espaço para correr, gritar, espernear, espatifar, rasgar, sujar, rir e ser feliz à sua maneira. Não lhe tirem estas pequenas coisas que para ela são tudo. Um dia terá de crescer, eu sei – mas até lá, deixem-na ser criança!
Perdoa-me menina dos olhos verdes. Perdoa-me por ser o que os outros querem e não o que tu desenhaste nas folhas em branco ou rabiscaste num caderno dizendo que escrevias. Perdoa-me por me ter deixado levar pela vontade de ser ‘grande’ – quis adaptar-me ao meio, iludida pelo Lamarckismo como tantos outros; pensava que os braços me cresciam se quisesse chegar ao telhado para tirar um bola presa ou que as pernas esticavam porque eu sentia necessidade de ser mais alta que os ‘grandes’ (pena não ter conhecido primeiro Darwin). O que importa não é adaptarmo-nos às necessidades do meio mas sim vencer com as nossas verdadeiras capacidades.
Dizem que a vida dá segundas oportunidades, que todos temos direito a errar – mais mentiras. A vida é feita de escolhas e, se não as fizermos correctamente, há tudo menos um ‘tenta de novo’. Hoje tive a prova disso. Aquela menina era parte de mim – no tempo em que a lua era minha e as estrelas brilhavam para me alegrar na noite escura. Aquela menina era a fé que eu tinha nos outros, era a pureza que eu buscava e via em todo o lado. Aquela menina era eu (noutra vida) – o eu que quis recuperar mas que perdi de vista enquanto divagava. Perdi, há que me voltar a sujeitar à realidade.
Todos me chamam mas eu permaneço, impávida e serena, ignorando que é o meu nome que se propaga naquele espaço. Julgo que sou invisível; coloco os meus óculos mágicos e o mundo deixa de existir (os outros deixam de existir – ou, pelo menos, não me vêem). E, naquele breve instante – imperceptível à escala humana – o meu mundo sou eu e eu sou a dona do mundo. É bom voltar a ser criança.

2 de Janeiro de 2009


By: Sara Q.

9 comentários:

  1. Bonito mas triste...
    Crescer è uma consequência inevitável de existir, há pessoas crescem mais rápido outras mais lentamente, porem ninguém pode fugir de crescer. Também as ilusões e desilusões fazem parte do crescimento, este que por vezes é tão doloroso…
    A vida dá segundas oportunidades, acho è que quem não aproveita a primeira, também não vai aproveitar a segunda. E ai vem a questão de não se aprender nada com os erros (com os nossos e com os dos outros), mas isso é outra história.

    Adorei
    BeijinhOs*

    Cátia

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  2. Oh, tu escreves demasiado bem para as pessoas de todo o mundo não saberem :$
    Devias mostar essa tua escrita tão bonita :$$


    Adoro este texto, como adoro todos os outros, eu não conseguia escrever nada parecido a isto, está perfeito! Juro :)


    beijinhoooo*

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  3. nós construímos o nosso carácter, a nossa realidade, o nosso mundo. e temos o poder e a capacidade de decidir o que nele ficaria melhor.
    não olhes para a criança com pena por o Pai Natal não existir, mas sim com felicidade pela felicidade nela nesta pequena mentira. :)

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  4. Esse mundo imaginário mas tão real é exclusivo das crianças, é a sua singularidade, a sua defesa contra todas as 'vantagens' de ser 'grande'. Mas o tempo não para, não se pode acreditar para sempre no Pai Natal. Talvez ela não sofra muito com isso. As crianças têm uma capacidade de aceitação incrível. Para ela, será apenas mais uma mudança, pais um passo em frente na escada que eventualmente a levará a ser 'crescida'.

    Gostei muito de ler, está fantástico =)

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  5. Bem, demasiado bom... Espectacular... Parabens...

    Adorei todos os pequenos detalhes e essa escrita tão bem fundamentada...

    Beijinho e desculpa a invasão...

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  6. "Deixem-na dizer as maiores mentiras desde que não magoem ninguém. Deixem-na pensar que a magia existe, que as pessoas são boas e que vai conhecer os Power Rangers"...essa frase, para mim, fez o texto maravilhoso.

    Tu ja sabes aquilo que penso sobre aquilo que escreves. Sabes que adoro!é puro e simples.

    Love you

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  7. eu tenho guardado :'p

    E esta perfeito.. eu nao consigo dizer mais nada quando leio o que tu escrevfes... aserio

    Beijinhos Primaa x'D

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